O campo do psicomotricista – os factores psicomotores
Por econchasadmin19 em
O campo do psicomotricista – os factores psicomotores

Como já definimos várias vezes, a criança é um ser holístico, como todos nós. Isto quer dizer que, quando trabalhamos com a criança, não a podemos dividir em parte cognitiva, parte motora, parte emocional, parte linguística, etc. No entanto, e mesmo sabendo que essa é uma das partes mais ricas a nível terapêutico, esta é também uma área de algum conflito, uma vez que existem vários profissionais terapeutas a trabalhar com a criança e existem inevitavelmente algumas áreas que se tocam, levando-nos a perguntar: o que é realmente do psicomotricista?
Em todo o mundo psicomotor existem vários autores que nos respondem a estas perguntas, desde Soubiran, Ajuriaguerra, entre outros. Nós, em Portugal, temos um autor de extrema importância na fundação da nossa profissão: Vítor da Fonseca. Existem vários livros, textos e artigos que atribuem a este autor o título de “pai da Psicomotricidade em Portugal” e um dia poderemos debater sobre vários destes temas. Hoje vamos focar-nos num dos pontos de maior importância que Fonseca definiu para o nosso campo de trabalho profissional: os factores psicomotores.
Antes de avançarmos para os factores em si, importa reforçar que a psicomotricidade não é um campo isolado, mas antes o estudo transdisciplinar e sistemático da relação holística corporal, ou seja da ligação entre o psiquismo e a motricidade, na sua globalidade. Esta relação implica que existe uma compreensão global do ser humano, numa visão do seu desenvolvimento, o que faz com que os factores psicomotores apresentados por Fonseca tenham uma relação hierárquica no seu desenvolvimento, estando os primeiros factores na base do desenvolvimento dos seguintes.
Tónus
Por isso, o primeiro factor é de uma importância enorme, pois serve de base para os restantes. Falamos então do tónus, que é no fundo o alicerce do resto do desenvolvimento psicomotor. O tónus está relacionado com a contração muscular de base que nos permite manter uma postura, relaxar ou movimentar-nos, ou seja, que no fundo nos permite controlar o nosso corpo. No entanto, este fator não deve ser entendido numa dimensão unicamente motora. Este primeiro factor tem inicialmente uma componente de vigilância e função de alerta, sendo o que os bebés usam para mostrar o seu agrado ou o seu desagrado por sinais corporais, alterando perante o toque da mãe, onde o bebé encontra conforto, ou uma situação de desconforto, em que o bebé se contrai e chora. Este factor é por isso extremamente emocional, e continua assim o resto da nossa vida: quando nos sentimos bem, estamos relaxados e movimentamo-nos de forma mais controlada; quando algo nos perturba ficamos tendencialmente mais contraídos, com dores musculares e com movimentos menos controlados. Este é um factor fundamental no trabalho com as crianças, funcionando como porta para o trabalho terapêutico.
Equilíbrio
A partir do tónus e do consequente controlo do corpo, começamos a adquirir a postura de estar em pé, de permanecer na mesma posição ou de manter um referencial. Estas aquisições todas estão dentro do factor equilíbrio, ou seja, a nossa capacidade de controlar o tónus do nosso corpo para dar uma resposta à força gravitacional. É o nosso equilíbrio que nos permite tarefas mais complexas, como saltar ao pé coxinho ou andar de bicicleta, mas também as mais simples, como estar em pé ou sentados. Frequentemente este factor é associado a uma maior perícia motora, desvalorizando a sua importância. Mas reparemos, uma criança que tem dificuldades ao nível do equilíbrio dificilmente consegue estar sentada, alterando constantemente o seu referencial e o seu foco de atenção. Desta forma, é comum que crianças com dificuldades de aprendizagem apresentem também dificuldades ao nível das aprendizagens escolares e académicas.
Lateralidade
Uma vez que a dominância do corpo comece a ser adquirida e que a criança seja já capaz de explorar o ambiente, o seu cérebro começa a ter um desenvolvimento exponencial relativamente ao seu ambiente. Como sabemos, o cérebro está dividido em dois hemisférios, responsáveis por áreas um pouco diferentes. É exatamente nesta associação entre o domínio corporal, a exploração do ambiente e o desenvolvimento cerebral que aparece a lateralidade. Ou seja, a criança começa aos poucos a mostrar qual o seu lado dominante, podendo este tanto ser esquerdo, como direito, e em alguns casos inclusivamente ambidestro. Esta competência é também de extrema importância em idade escolar, não só devido à especificidade cerebral envolvida, como também ao nível da consistência das aprendizagens, por exemplo, do escrever.
Noção do corpo
Uma vez que somos capazes de controlar o nosso tónus, de manter posições de equilíbrio e de termos a nossa lateralidade definida, a criança começa a compreender o corpo que está a aprender a dominar. Isto é, aos poucos começa a ter uma imagem mental das várias partes que constituem o seu corpo e da forma como é possível dominar as mesmas. A criança começa a aperceber-se das suas mãos e de todos os movimentos possíveis fazer com elas, dos seus pés, dos seus braços e pernas e do seu tronco. A criança começa a conseguir identificar nela, no outro e em imagens as diversas partes que constituem o seu corpo e a definir os seus limites para com o seu ambiente. Tudo isto define o factor noção do corpo, ou seja, a consciencialização do seu corpo e da sua relação com o mesmo.
Estruturação espácio-temporal
Por isso, faz todo o sentido que, uma vez que comecemos a dominar o nosso corpo, a conhecê-lo e a perceber os seus limites, começamos a perceber o ambiente extra-corporal que se inscreve num espaço e num tempo. Ou seja, uma vez que comecemos a compreender o que nos constitui a nós enquanto seres humanos, começamos a explorar os vários ambientes que nos envolvem tanto na sua dimensão temporal, como espacial. As crianças começam a perceber o que é ir em frente, para a esquerda, para a direita, quantos passos necessitam para chegar a um lado, quando devem começar a travar para não embater num obstáculo, ou mais tarde a representação gráfica do espaço. Este factor é de extrema importância para a escrita. Uma criança com dificuldades ao nível da estruturação espacial terá dificuldades em respeitar os limites da folha, a margem e ainda o espaçamento das letras.
Praxia global
Uma vez que a compreensão do nosso corpo e do meio envolvente esteja a ser adquirida, começamos a explorar a possibilidade de interação com o mesmo, com os mais diversos movimentos e expressões motoras. Quando estas expressões motoras envolvem movimentos abrangentes e de todo o corpo, estamos a referir-nos à praxia global. Isto envolve a coordenação, a dissociação e mesmo a locomoção no seu geral. No entanto é importante reparar, uma criança que se movimente muito, não é obrigatoriamente uma criança com um óptimo desenvolvimento ao nível das praxias, uma vez que os movimentos práxicos são programados e controlados. Assim começamos a conseguir apanhar e lançar as bolas, tendo consciência do nosso corpo, da bola que vem até nós e da coordenação necessária entre a mão e o olho, ou seja, óculo-manual, ou óculo-pedal, caso seja com o pé. Ainda, começamos a ser capazes de ter movimentos mais complexos, como o salto tesoura ou realizar um movimento com a mão direita, outro com a mão esquerda e outro com os pés, por exemplo.
Praxia fina
Chegando assim a um último fator, o topo da hierarquia: a motricidade ou praxia fina. Este fator diz respeito a movimentos mais precisos e detalhados, realizados ao nível da mão e com uma alta especialização hemisférica, requerendo o trabalho de todos os outros factores para trás. Reparemos por exemplo no escrever: para conseguirmos realizar esta tarefa, necessitamos de ter uma postura correta que nos permita estar afastados do papel e com os braços e mãos com uma contração que nos permita agarrar na caneta, mas sem que seja demasiado. Teremos de manter o equilíbrio para manter a nossa postura e sermos capazes de manter o referencial folha. Temos de ter o nosso lado dominante definido para sabermos com que mão vamos escrever. Por outro lado, temos de ter consciência do nosso braço e da nossa mão e da forma correta de agarrar um lápis. Temos de compreender o espaço em que vamos escrever e adaptar o nosso movimento a esse espaço. Ao nível do movimento, apesar de não ser global, deve ser controlado e é um movimento efetivamente fino, usando a mão e os dedos, requerendo o controlo do resto do corpo.
Como podemos ver, existe todo um campo de trabalho para o psicomotricista que é muito mais do que o motor e muito mais do que apenas o psíquico. É um todo que tem de ser trabalhado por um psicomotricista, alguém que conhece e domina as áreas.
Primeiro publicado em: https://terapeutaanafonseca.wordpress.com/2019/02/12/o-campo-do-psicomotricista-os-factores-psicomotores/